O vento que bate e bagunça o cabelo traz consigo o lembrete do que há muito se foi, mas ficou. Olhos lacrimejando, um espelho frente a um reflexo irreconhecível. A respiração pesada como numa cena em câmera lenta. Escadas. O tempo passa o tempo está passando o tempo passou passou passou. Passará. O ar gelado de uma noite de junho que passará assim como tudo que foi vivido. Lentamente. Abaixa, tira os sapatos e caminha sentindo aquela brisa que faz arrepiar os pelos por todo o corpo. O vestido que brilha reflete as ondas do mar que assiste o fim de algo que jamais poderia ter começado. Deveria ter começado. Não começou. Vira a cabeça e encara aquele mesmo mar, aquela mesma lua que devagar, bem devagar, vai se despedindo de uma noite tempestuosa e o mar — o mar, ele agita aquele ar noturno quase diurno e faz acordar memórias adormecidas. A ressaca que não é só dele. Olhos grandes e castanhos encarando o mar — aquele mar. Sendo tragados para o centro daquela força quase antinatural. A onda violenta quebra quase aos seus pés, que devagar — bem devagar, quase como quem não quer — vai dando distância e tentam a todo custo quebrar o encanto. O vento que bate bagunça o cabelo muda tudo de lugar e mudou, mudou tudo, mudou tanto: impossível reconhecer. Se reconhecer. A lembrança vem como a correnteza que arrasta e distancia da margem como quem embala para dormir. Sem aviso, sem alarde. O ar gelado contrastando com o quente das lágrimas que agora ocupam toda a extensão de um rosto que esconde a própria tempestade. Lembranças violentamente tomando conta — cheiros, toques, o silêncio que precede o começo de algo fadado ao fim. Larga os sapatos que caem na areia fina e ainda molhada: resquícios de horas antecedentes. Paredes brancas lençóis brancos uma janela com vista para o mar — aquele mar. Seca o rosto com a ferocidade de quem esconde o próprio sentir: com a ferocidade e a determinação de quem decreta: é hora de deixar tudo para trás. O ar gelado que sobe de baixo para cima ao contrário de tudo que há muito se foi, mas ficou. A brisa que bagunça o cabelo e faz os olhos arderem — olhos borrados e já secos. Andar na direção contrária ao vento e a tudo o que é confortável e esperado. Cabelos bagunçados embaraçados olhos borrados vermelhos pés descalços cansados deixando para trás as paredes a janela a vista o toque o cheiro a brisa e o mar. Aquele mar.
(título e texto inspirados na música desapaixonar de jade baraldo)